O Mapa de Minha Infância
O Mapa de Minha Infância

Mapa de minha infância

O Mapa de Minha Infância

 

            Nasci em Petrópolis porque o destino assim determinou. Minha mãe já estava prestes a dar à luz e meu pai havia viajado. Por segurança decidiram que ela ficaria na casa de minha  avó paterna em Petrópolis. Foi naquela linda cidade que eu vim ao mundo. Embora nunca tenha me fixado por lá, tenho por ela o maior carinho e muito orgulho, afinal, não haveria melhor lugar para uma professora de história nascer.

            Os primeiros anos de infância são desbotados em minha mente. Tenho vivas apenas algumas imagens de fatos isolados. Vejo-os como fotos tiradas e guardadas num álbum que quase nunca se abre. Na verdade, a maior parte do que lembro são através dos olhos e ouvidos de outros, pois muitas coisas que sei são apenas por ouvir alguém contar.

            Minha mãe diz que moramos em vários lugares no início de sua vida de casada. Ela cita principalmente Passa Três e Itaguaí, lugares em que meu pai tentou se estabelecer como comerciante. Mas mesmo vendo as fotos, não me lembro deste período, nem das casas em que moramos ou as pessoas com quem convivemos, mas lembro-me dos domingos em que íamos visitar meus avós em Coelho da Rocha. Chegávamos bem cedinho, minha mãe comigo pela mão e minha irmã no colo. O som desses domingos eram marcados pelo alto-falante da igreja evangélica na Rua Esmeralda. Sempre chegávamos quando o culto matinal terminava e as músicas começavam. Era uma igreja muito pequena, parecia mais uma capela. No topo de uma quase torre ficava o pequeno, mas valente, alto-falante. Pena que com o tempo as músicas ficaram inconstantes, até que cessaram completamente quando resolveram derrubar a pequeno templo e construir uma catedral. Mas aquele som ainda embala as lembranças dos primeiros domingos de minha infância.

           Um dia, meu pai tomou duas decisões que mudaram nossas vidas: ele iria se estabelecer no Rio e abandonaria a ideia de ser comerciante para se dedicar a música. Nossa vida mudou. A partir daquela decisão meu mundo se tornou Coelho da Rocha. Primeiro morando com meus avós e depois, com a separação de meus pais, minha mãe nos fixou definitivamente por lá.

            Meu avô morava numa casa com um terreno enorme, assim parecia principalmente para quem era pequena. Sua casa era construída na frente do terreno e nos fundos ele construiu duas casas, frutos da esperança de manter os dois filhos próximos mesmo depois de casados. Para se lembrar de Portugal meu avô plantou uvas em um espaço ao lado das casas. Era muito engraçado ver meu avô olhando a parreira na esperança de achar alguma uva sobrevivente ao clima da baixada. Não era só uva que ele plantava, na frente de sua casa meu avô fez uma imensa horta. Tinha tomate, alface, couve... Anos depois, sentada na varanda e olhando o espaço que era a plantação, não podia imaginar como cabia uma horta tão grande em um espaço tão pequeno. Acho que ele fazia o milagre da multiplicação do espaço.

            Ao lado da casa havia um terreno de meu avô que mais tarde foi vendido para uma rede de supermercados. O terreno era dividido em quatro partes – na primeira, logo ao lado da casa, ficava uma espécie de depósito, que se tornou um mine sítio quando meu avô montou um aviário com meu tio. Eles construíram galpões que serviam para colocar os animais que eram vendidos na loja ao lado. Eu e meus primos nos divertíamos em nosso mini zoológico, com galinhas, patos, marrecos, porcos, cabritos, ovelhas. E passávamos nossas manhãs, antes de ir para escola, correndo naquele espaço. Como não podia deixar de acontecer, depois de tantas brincadeiras no galinheiro, tínhamos que passar pelas mãos e agulhas de minha avó que vasculhava nossos pés em busca de bicho-de-pé. Hoje eu nem acredito que aquilo existia.

            Meu avô é que tomava conta do aviário enquanto meu tio seguia por outros negócios. Fazia parte de minha rotina levar o almoço para meu avô. Enquanto ele comia, na parte interna do estabelecimento, eu ficava na loja servindo os fregueses. Tinha cerca de oito anos e lembro-me que meu avô colocava um banquinho para que eu pudesse alcançar o local onde embrulhava os ovos. 

            Depois do aviário vinha um espaço muito interessante. Meu avô tinha construído uma espécie de loja, que era estreita e que nos fundos havia uma grade formando uma cela. Ele entregou aquele espaço para que fosse estabelecido uma sub-delegacia. Nunca vi alguém  preso ali. Mas um dia ouvi um barulho de pessoas correndo e falando alto, cheguei ao portão e vi uma multidão em frente da sub-delegacia. Como era pequena, não via o que ou quem eles estavam cercando. Fui chegando mais perto e passando espremida por entre as pessoas. Enquanto passava ouvia exclamações como “Mas ela casou esses dias!” “Como pode fazer isso?” “O que será que aconteceu?”. Ao chegar ao centro do aglutinamento me deparei com uma mulher de pé e enrolada em um cobertor. Seu rosto estava com uma expressão estranha. Parecia que ela olhava para o vazio, não respondia a ninguém, não chorava, não ria. Apenas olhava o nada. Lembro que uma borboleta, daquelas pretas que não gostamos quando entram em nossa casa, veio até ela e pousou em seu cabelo.  Apareceu um carro, colocaram-na acomodada no veículo e ela se foi. Meu avô me explicou que ela estava muito doente da cabeça e tinha colocado fogo no próprio corpo. Nos dias que se seguiram eu soube que ela havia morrido. Nunca esqueci olhar vazio daquela mulher.

            No final, e esquina do terreno, ficava o armazém que fora de meu avô durante tantos anos e que ele tinha alugado logo após ter aberto o aviário com meu tio. Eu gostava muito de ir até o armazém. A filha do senhor que agora o alugava era muito simpática, me colocava no balcão e sempre me dava balas. Mas o que eu gostava mesmo era de vê-la tirando o dente. Ela pra me agradar, se despia da vaidade e tirava com a língua um dente postiço que tinha bem na frente. Eu ria muito e voltava satisfeita com minhas balas para casa.

            Foi neste trecho da Rua Esparano, que os políticos mais tarde trocaram o nome para Arnaud Guedes de Amorim, que aprendi a brincar, cresci e vivi. Ali eu transitava até a padaria, o mercado Valente, a sapataria do “seu” João. Seguia todos os dias para o Ginásio Vitória, minha escola que ficava na rua Belkis, paralela a nossa. Não foi lá que aprendi a ler. Naquela época os pais colocavam os filhos em escolinhas de fundo de quintal, onde aprendíamos a ler e só depois éramos matriculados em escolas regularizadas. Minha primeira professora foi uma dona de casa que morava na Rua da Prata. Em duas mesas enormes, ladeadas por bancos compridos, acotovelavam-se mais crianças do que o espaço comportava. E de uma forma que nenhuma teoria pedagógica moderna pudesse explicar, todos aprendiam a ler.

            Nosso bairro era pobre, as únicas ruas calçadas eram a Esparano e a Belkis, as outras além de não serem calçadas ainda tinham esgoto a céu aberto. Era comum pularmos valas ou passarmos em pequenas pontes para entrarmos nas casas de colegas. Mas pelo menos nos nomes das ruas éramos ricos, havia ruas Diamante, Esmeralda, Safira, Prata, Rubi. Claro que esses nomes foram trocados. Hoje outros nomes ocupam as placas de identificação, não são mais as ruas de minha infância. As ruas de minha infância estão guardadas em minhas poucas lembranças, embaladas na música do alto-falante.

                                                                          Dinaiá Lopes