
Um verão em Saquarema
Férias de verão não é coisa para deixar passar em branco, mas em 1983 tudo parecia colaborar para o marasmo. Não aparecia nada para se fazer, nenhuma possibilidade de viagem e todos sabem que quando se é jovem, se você não viajar, você não aproveitou as férias. A cada dia que se despedia, maior era a certeza de aquele verão passaria em branco. Até que conversando com meu primo Paulo surgiu a possibilidade de uma viagem. Ele era o dono de todas as ideias, o que não resolvesse é porque não tinha solução. Segundo ele a coisa seria simples: seu irmão Carlos tinha construído uma casa em Saquarema. A casa ainda estava em fase de finalização, mas poderíamos ocupá-la por uma semana. Não precisávamos nos preocupar com nada, pois ele também arrumaria um carro para nossa viagem. Então, ficou decidido: no dia seguinte, às dez horas partiríamos rumo a Saquarema.
Como combinado, no dia seguinte, estávamos eu, minha irmã Dinorá, nossa amiga Ailesig e Chiquinho, meu namorado na época, parados no portão, com as bolsas prontas e o olhar na esquina. De repente surge a Kombi mais velha que já vi, não queríamos acreditar que nela estaria Paulo, mas a Kombi parou no portão e não teve como fugir, se queríamos uma viagem de verão, deveríamos enfrentar a velha “Dona Kombi”.
Para tornar as coisas ainda mais interessantes, Paulo nos comunicou que teríamos companheiros de viagem: seu amigo Sergio, sua mãe, (Minha tia Tereza) e Dona Édem, amiga de Tia Tereza. Ele também levaria na “Dona Kombi” algumas encomendas a pedido de seu irmão.
A “Dona Kombi” não tinha bancos de passageiros e o chão estava coberto com papelões para cobrir alguns buracos que poderiam nos assustar, mas que Paulo garantia não oferecia nenhum perigo. Arrumamo-nos da seguinte maneira, na parte alta da traseira do veículo, onde ficava o motor, encostadas numa enorme trouxa de roupas de cama, seguiam sentadas Tia Teresa e sua amiga Dona Édem com seu cachorrinho pequinês no colo. Encostada na lateral interna do veículo estava uma bicicleta prometida pelo meu Primo Carlos ao rapaz que tomava conta de sua casa. Havia também duas sacolas de compras com os mantimentos da semana e dois frangos vivos enrolados em jornais. A presença dos frangos era justificada por não ter geladeira na casa e por esta razão a carne deveria ir viva para não estragar. Minha irmã Dinorá, nossa amiga Ailesig e o Sérgio sentaram-se no chão, em meio a tudo isto e o mais longe possível dos buracos. Ailesig foi informada que deveria viajar segurando a maçaneta que não estava funcionando. Eu fui privilegiada sentando na frente entre Chiquinho, que dirigia e Paulo que também tinha que segurar a porta do seu lado.
Todos embarcados, incluindo cão e frangos, começou a nossa viagem. A Dona Kombi fazia barulhos nada agradáveis, mas Paulo assegurou que o principal de um carro era o motor e o dela estava ótimo. Dito isto o carro parou. O Silêncio foi geral, tínhamos conseguido chegar na Dutra, e a dúvida era se nossa viagem acabaria ali. Logo meu primo nos tranquilizou, apenas tinha acabado a gasolina. Os homens empurraram até o próximo posto, abastecemos e continuamos a viagem... bem lentamente.
Embora o trânsito estivesse livre levamos quase três horas para chegarmos a Niterói e resolvemos parar num posto de gasolina para dar um tempo para Dona Kombi não entregar os pontos. Saímos para esticar as pernas. Quando estávamos no bar tomando um refrigerante, escutamos um barulho enorme vindo do carro, corremos até lá e vimos que os frangos se soltaram e o cachorro de Dona Édem rodava desesperado dentro do carro tentando abocanhar as aves. Não sei o que era mais engraçado: a correria dentro da Kombi ou a gritaria de Dona Édem. Com cuidado os meninos conseguiram pegar o cachorrinho e salvar nossas futuras refeições.
Todos a bordo novamente e lá fomos nós para a segunda etapa da viagem. Depois de mais duas horas chegamos finalmente a Saquarema. Paulo resolveu passar na praia antes de ir até a casa. Depois de uma viagem de quebrar a moral de qualquer um, ficar diante de um mar deslumbrante e uma praia completamente deserta, ninguém pensou duas vezes: sem falarmos nada, mas como se houvéssemos combinado antes, corremos para a água e mergulhamos como crianças que nunca viram o mar. Brincamos por mais de uma hora. As roupas molhadas tinham algumas partes manchadas pela tinta que se desmanchava com a água salgada. Mas valeu a pena. Valeu à pena a blusa branca manchada de vermelho. Valeu perder o relógio que não era a prova d’água. Valeu ver o entardecer numa praia só nossa. Valeu à pena mergulhar no mar de Saquarema E mesmo que tivéssemos de voltar naquela hora para casa, a viagem já teria valido a pena.
Mas, nosso destino final não era ali, tínhamos que achar a casa. Estávamos em Saquarema de 30 anos atrás. Naquela parte da cidade os loteamentos ainda começavam a se formar e as casas eram poucas. Assim que percebeu que o sol estava indo embora Paulo começou a insistir que fôssemos para a casa de Carlos, mas nós queríamos ver a despedida do dia. Até que Paulo deu o verdadeiro motivo de sua preocupação. Ele havia nos dito que a casa estava em condições de uso, apenas com um ou dois detalhes faltando e agora ele comunicava que esses dois detalhes eram água e luz. O loteamento era novo e ainda não tinha sido instalada rede elétrica e nem água encanada. Por isto ele tinha pressa, no escuro seria mais difícil encontrar uma casa que ele não conhecia.
Não foi possível chegar com a luz do sol. Ficamos parados no portão na expectativa de entrar ou não. E se a casa não fosse aquela? A solução do impasse era óbvia: se a chave que trouxemos abrir o cadeado do portão é porque chegamos ao lugar certo.
O portão abriu e como estava tudo muito escuro, Chiquinho foi dirigindo a Dona Kombi com os faróis acesos para iluminar o caminho. Paulo e o amigo Sérgio, cheios de uma pseudo valentia, caminhavam, um de cada lado do carro, com pedaços de pau que encontraram na entrada. Não imagino o que eles pensavam enfrentar. Atrás do carro, fechando o cortejo, iam as mulheres e não pude deixar de rir daquela procissão de encharcados. Para dar o toque final, a amiga de minha tia vinha com o cachorrinho no colo, olhando assustada para a casa e repetindo baixinho que não esperava aquilo.
Tomamos posse da casa. Era uma casa muito boa, o terreno era enorme. A casa tinha uma varanda que a circulava, tinha uma cozinha ampla, com um fogão e, pasmem, tinha uma geladeira, o problema era que ela estava sendo usada como armário, já que não havia luz. Na torneira não saia água, mas Paulo nos tranquilizou tinha um poço no quintal a nossa disposição, bastava apenas bombear. Havia dois banheiros, um dentro da casa e outro na varanda dos fundos. Tinha três quartos. Todos os cômodos estavam completamente vazios. Como só havia um lampião a gás e poucas velas, ficou decidido que todos dormiriam na sala. Bastaria esticar as cobertas e lençóis que estavam na trouxa de roupas e colocar lampião no meio da sala e todos teriam conforto e luz.
Quando terminamos de arrumar tudo já passava das oito horas, a noite estava definitivamente instalada e a fome bateu, mas não estávamos preparados para cozinhar nada e Paulo deu a ideia de comermos alguma coisa numa birosca que vimos ali perto. Entramos na Dona Kombi e saímos. A birosca era típica de lugares como aquele, o dono era simpático, a varandinha era feita de pedaços de galhos retorcidos com telhas coloniais, onde havia uma mesa de sinuca e uma mesa comprida com bancos corridos ao longo dela. Chegamos, nos apresentamos e pedimos uns salgadinhos. O dono logo ficou batendo papo conosco e disse que ali era muito deserto, pois tudo era muito novo. Ele mesmo estava ali há pouco tempo. Mas tinha esperança de que logo estaria tudo muito movimentado. E eu baixinho pedi que continuasse daquele jeitinho.
Comida no buchinho, pé no caminho. Voltamos para a casa, colocamos os pijamas e camisolas e fomos dormir. Bom, pelo menos era o que pensávamos, logo começou o zunido no ouvido, as picadas pelas partes descobertas do corpo. Os mosquitos atacavam. Dona Édem era quem mais reclamava. Por fim não sabíamos o que era pior, os mosquitos ou ela reclamando. Até que Paulo teve uma grande ideia: não há mosquitos na beira do mar devido ao vento, então, vamos dormir na praia. Levantamo-nos, cada um pegou um lençol e logo estávamos na praia.
Já passavam das duas da madrugada e estávamos deitados na areia. Havia pouquíssimas casas por perto então a luz das estrelas não tinha concorrente e nunca vi um céu tão lindo. Meu sono sempre foi fácil e logo apaguei, mas acordei com Dona Édem dizendo que estava com medo, que estava ouvindo vozes. E ela não estava errada, ouvíamos vozes distantes e víamos pontinhos de luzes balançando, acredito que eram pescadores que estavam na praia. Como a valentia não era o ponto forte de nosso grupo, Paulo resolveu que deveríamos voltar para casa. Nesse vai e vem, a noite já estava quase acabando e quando chegamos a casa não sentíamos mais os mosquitos, não sei se era pelo nosso cansaço ou se já havia encerrado a jornada de trabalho dos insetos. Finalmente dormimos, pelo menos eu dormi.
Acordei cedo, mas não fui a primeira. Tia Teresa estava preparando o café, mas não vi Dona Édem e muito menos o seu cãozinho. Paulo a tinha levado até a cidade para ligar para o filho, ela havia decidido que não conseguiria ficar ali por uma semana e iria pedir que o filho viesse buscá-la. Antes do almoço ele já estava levando Dona Édem e Tia Teresa embora. Vendo as duas irem embora, veio a grande questão: quem iria cozinhar? Naquela época eu queimava até ovo frito, e com certeza as coisas não eram melhores para a Nora ou para Ailesig. Mas naquele momento o que pensávamos mesmo é ir para a praia, depois as coisas se resolveriam.
A praia estava ótima, só nossa. Aliás, durante toda a semana ela foi só nossa. Não vimos uma viva alma por lá. Apenas no último dia, um domingo, é que encontramos com três casais de namorados, que logo que nos viam não gostavam muito e se afastavam até sumirem de nossas vistas.
O mar era agitado, e os meninos tinham a preocupação de nos proteger, por isso combinaram que ficariam além do quebra mar para o caso de uma de nós escapar ou ser arrastada. Foi graças a essa estratégia que Paulo conseguiu agarrar a Ailesig pelos cabelos, que eram curtíssimos, quando ela levou um caixote e já estava sendo arrastada pelo mar. Ela dizia que sabia nadar e que se sairia bem, ele dizia que a tinha salvo, quem estava com a razão nunca saberemos. Na praia descobrimos um novo esporte: caça ao siri. Havia muitos pela praia, mas muito pequenos, não acredito que servissem para comer, mas com certeza serviram para nos divertir. Os meninos corriam como loucos e se jogavam sobre os pobrezinhos para pegá-los e quando isto acontecia, os exibiam como troféus valiosos. O desafio era ver quem pegava mais siris, mas eles se misturavam e isto não importava, o bom de tudo era o divertimento por isto soltamos todos e declaramos empate.
Enquanto as meninas ficaram mais um pouco na praia, os meninos foram dar uma volta e retornaram com inseticida e estabeleceram nossa estratégia: todas as noites fechávamos a casa, enchíamos de inseticida e íamos esperar o cheiro do inseticida passar jogando sinuca e batendo papo na birosca. Depois de algum tempo voltávamos para dormir como anjos e sem mosquitos.
Todos os dias quando voltávamos da praia tínhamos uma rotina para o banho. O primeiro passo era encher uma tina enorme bombeando a água do poço. Como a tina era muito pesada, levá-la até o banheiro era impossível. Deixávamos a tina na varanda dos fundos. Havia uma cerca de arame farpado circundando a casa, mas não havia casas habitadas por perto, portanto, não havia problema de tomarmos banho ali mesmo na varanda, ninguém nos veria. Damas primeiro e claro que por segurança os meninos ficavam trancados na casa. Depois trocávamos e era a vez dos rapazes. Preparávamos o rango enquanto os meninos tomavam o banho deles. Tudo funcionou bem, até que o dia em que Ailesig começou a gritar que tinha um homem nos olhando. Lógico que todas passamos a gritar. Os meninos vieram correndo até a janela dos fundos para ver o que tinha acontecido e se de um lado as bobocas gritavam feito loucas, correndo em busca de toalhas, do outro os meninos gritavam que nós precisávamos abrir a porta para eles. Quando finalmente eles foram soltos correram para onde Ailesig dissera ter visto o homem. Passado o susto veio a razão: o que levaria um homem continuar abaixado, olhando pra mulheres nuas mesmo depois delas terem gritado e chamado os machões da casa? A resposta veio a jato, o “homem” que Ailesig tinha visto era um toco de árvore que estava no meio do capinzal. E não pense que esta foi a única vez que Ailesig viu “coisas”. Claro que devemos levar em consideração que o lugar era deserto e que a noite, a escuridão assustava e foi numa noite bem escura em que estávamos dormindo na sala quando acordamos com ela gritando que tinha homens andando na varanda. A frente da sala era toda envidraçada e dava uma boa visão de quem passava na rua. Ficamos tentando acalmá-la afirmando quer não tinha nada, principalmente os meninos que estavam com medo de ter que sair para verificar tudo. Quando já estávamos vendo que só dormiríamos se fosse provado que não tinha ninguém lá fora, ela gritou novamente: “Olha lá!!! Um homem, outro, outro...” E vimos que na verdade era um carro que passava e a luz do farol fazia a sombra dos mourões da cerca “passearem” pela varanda. Explicado a presença dos “intrusos” a tranquilidade reinou novamente e voltamos a dormir.
Durante o dia, além da praia, sempre tirávamos um horário para passear. Conhecemos alguns pontos da região e outro que já conhecíamos revimos. Aproveitávamos sempre que possível para comer fora. A comida caseira não era das melhores. No primeiro dia tivemos um dos frangos, brinde de Tia Teresa, que antes de ir embora nos deixou um frango ao molho pardo delicioso. E foi só. O outro frango tirou a sorte grande e deve estar vivo até hoje pelos quintais de Saquarema, e para nosso rango restou um festival de miojo.
No sábado fomos até Araruama, passeamos pela cidade que acompanhou nossa juventude, pois meu tio tinha casa lá e todas as férias Araruama era ponto obrigatório. Fomos até o parque e ficamos loucos. Escolhemos o bate e volta. A cada rodada ficávamos mais viciados e ao sinal sonoro saíamos do carrinho jurando que a próxima era a última rodada. Afugentamos todos os outros interessados no brinquedo. Que pai em sã consciência deixaria seu filho participar de uma rodada em que seis marmanjos se digladiavam. Quando vimos que estávamos gastando todo o dinheiro resolvemos nos proteger de ter que voltar a pé pra casa. Separamos o dinheiro para a gasolina de Dona Kombi e compramos todo o resto em bilhete do bate e volta. Quando gastamos o último bilhete e o sinal tocou, saímos do brinquedo e Paulo deu a sugestão ideal para aquela hora. “Vamos sair sem olhar pra trás, se vacilarmos vamos ter que voltar a pé pra Meriti”. E dito isso saímos do parque correndo como loucos e só paramos no estacionamento.
O último dia foi lindo. O sol brilhando, o mar batendo bonito, e nós com algumas gramas a menos graças a dieta do miojo. Aproveitamos o mar até o último instante. A semana passou rápida, mas as lembranças ficaram pra sempre. O olhar assustado de Ailesig com medo dos mourões; o homem toco de árvore que nos espiava tomar banho; os mosquitos nos dando a chance de vermos o céu mais estrelado de todos os tempos; a correria para pegar os siris; os casais de namorados fugindo de nossas risadas; os motoristas loucos do bate e volta; a risada gostosa de Paulo que agora alegra mais o céu. Que saudade! Mas o bom disto tudo é que ter saudade do que vivemos é a certeza de que vivemos bem.
Dinaiá Lopes