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Vô Antônio
Vô Antônio

 

 

         

 

Foto do Vô Antônio

 

Vô Antônio

 

     Considero a vida uma viagem. Ela começa quando nascemos e percorre vários caminhos até chegarmos ao destino final, que é quando encerramos nossa etapa aqui. Durante esta viagem encontramos vários companheiros, alguns que chegam para ficar até o final da jornada, outros precisam descer mais cedo em alguma estação. Alguns esquecemos na primeira curva da estrada, outros seguem conosco guardadinhos no coração.

     No início de minha viagem encontrei um grande maquinista. O chamo de maquinista, pois foi ele quem me conduziu nos primeiros anos. Esse companheiro especial se chamava Antônio e era meu avô materno.

     Vô Antônio era chamado de Charuto pelos amigos, pois não era visto sem um charuto na boca. Talvez no bairro onde morávamos e onde ele tinha um armazém, ninguém saberia informar onde encontrar o senhor Antônio Maria, mas se perguntassem pelo Charuto, a resposta era imediata. Não era conhecido só por ser o português do armazém, era conhecido pela alegria, pelas brincadeiras. A cada pessoa que começava a trabalhar com ele havia o batismo. Minha vó não estranhava mais quando aparecia o novato com ordens de pegar a escada de pintar rodapé ou então o martelo de quebrar vidro. Os fregueses eram amigos, tão amigos que meu vô perdeu a conta de quantos afilhados recebeu.  Alguns ele acolheu quando os pais estavam com problemas e com isso ajudou a criar muitas crianças. Por ser bom homem, foi um mal comerciante e não enriqueceu como seu companheiro e patrício que fundou o que seria mais tarde uma das maiores redes de supermercado do país. Mas era feliz. E isso lhe bastava.

     Não gostava da Igreja. Se perguntassem a razão ele simplesmente dizia que não confiava em padres. Em alguns momentos se dizia ateu, mas seu comportamento era o mais cristão possível. Seu ateísmo era apenas sua maneira de irritar a Igreja.

     Veio de Portugal depois de ser obrigado a casar com a namorada que tinha engravidado. Dizia que o filho não era dele e fugiu para o Brasil na noite da lua de mel. Aqui chegou jovem e bonito, não parecia português. Pelo menos não os portugueses baixinhos e morenos que geralmente passeavam pelas ruas do rio. Ele era alto, muito claro e realmente um belo rapaz.

     Trabalhou em uma oficina e logo que juntou dinheiro comprou um taxi. Conheceu minha vó e se apaixonou - segundo ela, ele teria ficado encantado por suas pernas, ou o que conseguia ver delas - mas só depois que conseguiu levá-la para a cama é que lhe disse que era casado em Portugal. Resolveram então morar juntos, numa casa na rua Mariana, em Botafogo.

     Vô Antônio aprendeu a amar o Brasil. Acredito que por ter encontrado aqui a liberdade que sempre buscou. Gostava tanto daqui que suas cartas traziam os amigos para as terras brasileiras. E foi por influência desses amigos que resolveu ir morar tão longe de Botafogo que para explicar para a mulher e seus dois filhos para onde iriam, achou mais fácil dizer que morariam na roça. Foi em Coelho da Rocha, distrito de Se João de Meriti que ele montou seu armazém, acabou de criar seus filhos, se cercou dos amigos que vieram de Portugal e fez inúmeros novos amigos.

     As lembranças que tenho dele são doces. Nunca brigava, sempre conversava. Uma vez o vi exaltado conversando com os amigos, eu no cantinho do armazém fiquei olhando admirada por vê-lo brigando com alguém. Eu não entendia nada da conversa, mas uma palavra ficou na minha cabeça e assim que os amigos dele saíram fui até ele e perguntei: “Vô, o que é comunista¿” Ele olhou espantado pra mim e perguntou onde eu tinha ouvido aquela palavra. Eu disse que foi na conversa dele. Ele me pegou no colo, me sentou no balcão e disse muito sério que eu não deveria nunca mais repetir essa palavra, pois poderia ser presa. Eu que não fazia a menor ideia que estávamos em plena ditadura militar,então imaginei que deveria ser o maior palavrão do mundo para ter um castigo tão grande.

     Quando eu estava para completar cinco anos ele chamou minha mãe e disse que eu deveria ficar com ele. Meu pai era músico, estava atrás do sonho dele e minha mãe sonhando o sonho de meu pai. Enquanto eu e minha irmã éramos pequenas acompanhávamos nossos pais, mas a idade escolar chegou e para meu vô isto era sagrado. Decidiu que eu ficaria com ele. As primeiras noites chorei muito com saudade de minha mãe e minha vó deu-me uma boneca muito velha que estava em seu armário. Dormi agarrada a boneca e isso se seguiu por muitos anos. Um dia o dedo da boneca quebrou e quando ele chegou do trabalho me encontrou chorando muito. Mesmo cansado sentou ao meu lado e tentou me consolar, mas eu não parava de chorar. Ele dizia que levaria a boneca ao hospital das bonecas, e lembro que lhe disse que o dedo era tão pequeno que até ele levar poderia perdê-lo. Ele então levantou pegou o dedinho da boneca, embrulhou em um papel com todo cuidado, foi até o quarto, puxou a cama e abriu um cofre secreto que ele tinha na parede, falou que eu poderia ficar tranqüila pois o dedinho estaria seguro lá. Hoje essa lembrança é o símbolo de sua doçura.

     Tinha uma tristeza: era analfabeto. Quem convivia com ele não imaginava, pois era uma pessoa que falava bem, discutia qualquer assunto. Mas disfarçava sempre que aparecia a situação que exigia leitura. Repetia sempre que o estudo era a única riqueza que nunca me roubariam e que eu deveria estudar muito. Ele soube que eu seria professora antes que eu  mesma soubesse. O considero meu primeiro aluno, pois ainda com nove anos eu decidi que o ensinaria a ler. Ele queria assinar o nome e foi a única coisa que pude lhe ensinar.

     Um dia, ao pedir dinheiro para a merenda o vi tirar da carteira duas folhas de goiabeira. Achei que era mais uma das suas brincadeiras, mas ele insistiu que aquela quantia era suficiente para a merenda. Eu não sabia, mas eu estava perdendo meu avô. A arteriosclerose veio rápida, em pouco tempo ele não conhecia mais ninguém, não falava coisa com coisa e para acalmá-lo o único jeito era caminhar com ele. Pela manhã, enquanto eu estava na escola, minha irmã andava com ele e minha vó. A tarde era minha vez. Todas as noites eram noites de gritaria. E o homem que era o meu herói foi se transformando em uma pessoa sem vida no olhar.

     Ele partiu poucos dias depois que eu completei quinze anos. Descansou depois de seis anos sem a lucidez e a alegria que eram sua principal característica.

     Hoje ainda me pego imaginando como ele deve estar lá no céu, tentando explicar para o mestre lá de cima, que seu ateísmo não era uma coisa pessoal; reclamando por não poder fumar seu charuto e pedindo aos anjos que procurassem sua escada de pintar rodapé.

                              Dinaiá Lopes