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Vivendo a Roda Viva
Vivendo a Roda Viva

Luta

               Cresci em plena ditadura. Uma de minhas mais remotas lembranças é a entrada de soldados armados no ônibus que eu estava. Olharam a todos, revistaram alguns e quando saíram lembro-me que os passageiros estavam parados como na brincadeira de estátua e eu olhava tudo sem entender nada. Por que me lembro deste momento? Hoje acredito que tenha sido pelo medo que pude perceber em minha mãe. Era justamente a manhã do dia primeiro de abril de 1964, o dia em que o Brasil acordou mais triste com a enorme brincadeira de mau gosto que os militares aprontaram. Morávamos longe da família de mamãe, ela ficou com medo que as coisas se complicassem e quis ficar perto dos pais. Era para lá que estávamos indo.

               Acompanhei a partir de então momentos de palavras sussurradas, olhares amedrontados, livros sendo escondidos, sem entender o motivo. Por ser muito pequena perdi o bonde da história e passei a viver no país das maravilhas. O país que foi tricampeão mundial de futebol em 70, o país que “vai pra frente” e cantava confiante na escola “Eu te amo meu Brasil, eu te amo”.  Pulava valas negras para visitar minhas colegas, mas acreditava que vivíamos num país rico. Tinha aulas de Educação Moral e Cívica em que o patriotismo cego era insuflado. Na escola tínhamos uma rotina ao longo da semana em que cantávamos o hino Nacional, o da Independência, passando pelo da República, da Bandeira. Isto sem falar no hino do Soldado, da Marinha e até de Duque de Caxias.

               Relembrando minha primeira escola, tenho certeza que ela era fruto de um governo autoritário, porém também percebo que não era difícil para o diretor aceitar esta realidade, digo inclusive que parecia bem confortável com a situação. Ele era de origem italiana, não sei dizer se nasceu aqui ou lá, mas não me admiraria se no passado tenha sido simpatizante de Mussoline. Era o típico diretor da época, durão e disciplinador. Os alunos o apelidaram de camburão, pois como o carro da polícia, ele passeava pelo pátio durante o recreio e sempre recolhia alguém para “averiguações”. Porém, por alguma razão que não sei dizer, nunca me amedrontou. Pelo contrário, eu sempre o via como uma pessoa que se fazia de durona, mas que se derretia quando via alguém com problemas. Quando bem mais tarde me tornei professora daquela escola, pude perceber em algumas situações rotineiras que estava certa. 

               Vivíamos numa redoma de vidro onde só era permitido ver a luz autorizada e este fato influenciaria diretamente nossas vidas. Terminei a oitava série sem saber o que era socialismo, sem nunca ouvir falar da revolução russa e achando que Cuba era uma ilha tropical e exótica que aparecia raramente nos filmes dos anos 50 que passava na sessão da tarde. Quem poderia nos trazer alguma informação da realidade fora da redoma, não o fazia por medo, por acomodação ou simplesmente porque concordava com o que acontecia. Com isto, não ouvíamos os gritos vindos dos porões da ditadura, que com certeza estavam muito longe de nossa escola

               Aos quinze anos troquei de colégio para buscar meu diploma de professora. A nova escola era dirigida por freiras e a redoma parecia continuar a funcionar. Porém, não sei se por um controle menor ou uma maturidade maior, pela primeira vez comecei a ver a vida do lado de fora. Era uma fresta mínima e olhando por ela tudo era confuso e desfocado. As informações chegavam soltas, como se os professores soltassem as sementes ao vento e torcessem para que caíssem em solo fértil para germinar. Lembro-me da primeira semente: uma professora de Organização Social Polícia disse durante uma aula que o Brasil era um país do terceiro mundo. Levei um susto. Como? Terceiro Mundo? Subdesenvolvido? Mas o Brasil era tricampeão de futebol, o mundo inteiro cantava Garota de Ipanema, Deus era brasileiro. E pude finalmente perceber que os parâmetros que me deram estavam errados. Que eu era fruto de uma mídia controlada para dizer o que o governo queria e não conhecia ninguém que dissesse o contrário. Quando você só ouve um lado da história é muito mais fácil acreditar que seja verdade. “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” dizia Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler e que com certeza sabia do que estava falando.

               Minha turma do curso normal era composta de 45 meninas. Éramos tão politicamente desconectadas com o mundo que a prática da censura por parte da escola chegava a ser ingênua. Um exemplo foi quando um professor de literatura distribuiu uma lista de livros onde deveríamos escolher um para lermos nas férias. Saímos da escola com a lista nas mãos e direto para a papelaria. Lá o pedido era unânime: - “Qual livro era mais fino?” E o balconista voltava com o livro Uma vida em segredo, que foi o mais lido em nossa turma. No dia seguinte a irmã Helena, diretora da escola, nos comunicou que houvera uma falha na lista distribuída pelo professor. Deveríamos retirar os três títulos de autoria de Jorge Amado, frisando que eles não deveriam ser lidos. Claro que compramos e lemos os três livros. Não entendíamos a razão da proibição. De imediato pensamos que era por sua narrativa picante. Uma colega comentou que o pai havia dito que o autor era comunista (que pra nós na época era quem comia criancinha). Eu poderia mentir e dizer que concluímos que era por mostrar a realidade social e econômica que vivíamos, mas não tínhamos condições de desenvolver essa análise crítica. Porém, o fato tornou-se marcante porque foi a primeira  proibição declarada e despertou em muitas de nós a curiosidade sobre o que era ou não proibido e principalmente a razão da proibição.

               Não eram muitos os professores que nos falavam do que realmente acontecia no país. A maioria dava sua aula e pronto. Claro que as disciplinas das ciências humanas eram as mais “observadas” e, portanto os professores eram os mais “cuidadosos”. Os cuidados dos professores tiravam o brilho das aulas de História que se tornavam um amontoado de fatos isolados sendo derramados como se na vida as coisas acontecessem sem causas ou consequências. Os fatos mais difíceis de serem explicados sob a luz de um regime autoritário simplesmente eram ignorados. 

               Por que as aulas de história eram tão ameaçadoras ao regime militar? Porque uma aula de história que apresenta os fatos conectados em uma corrente de causas e efeitos desenvolve o senso crítico do indivíduo. Ele passa analisar, tirar suas conclusões, pensar por si mesmo. Pronto! Chegamos ao ponto que todo governo ditatorial quer evitar. Para ter certeza que não haveria mais cidadãos pensantes mudaram o sistema de ensino. Passamos a ter uma filosofia educacional puramente tecnocrata. O importante era formar os técnicos que o país precisava e não cidadãos pensantes. Foi justamente dentro deste sistema que fiz minha opção profissional, que eles chamariam de “o lado negro da força”. Foi assim que cheguei à faculdade de história aos dezessete anos e ainda sem entender muito bem o que acontecia em meu próprio país.

               Iniciei a faculdade com dúvidas enormes e com uma sede de saber que não foi saciada.  Eu era a única da minha turma que vinha da baixada, a maioria de meus colegas eram da zona sul, estudaram em cursinhos de pré-vestibular e eram filhos da classe média, cujos pais comentavam em casa o que acontecia na política e economia do país. Resumindo, uma realidade bem diferente da minha. Eu que já era tímida, emudeci de vez. Tanto que no primeiro seminário que apresentei, despejei toda pesquisa e ao terminar escutei o professor indagar se alguém teria alguma pergunta a fazer.Um colega levantou e com cara meio assombrada, meio de deboche disse: “Ela fala?!”  E eu já estava há seis meses em sala de aula.

               Meu silêncio não era só por timidez, eu achava realmente que na turma não havia interesse pelo saber. Parecia que o objetivo era cumprir o horário e receber o diploma ao final do curso. Eu que no início imaginei que poderia encontrar um centro de troca de ideias, debates, me decepcionei. Um dia eu estava na aula de antropologia e na minha carteira estava o livro que o professor havia mandado que lêssemos. Eu adorei o livro e a cada dúvida ou observação que eu gostaria de fazer, escrevia nas margens das páginas. O professor ao ver o livro todo escrito, o pegou e começou a ler. Devo ter ficado rosa choque. Depois de alguns instantes ele fechou o livro me devolveu e disse: -“Essas anotações são suas?” Eu balancei a cabeça afirmativamente e ele quase que com tristeza disse apenas: “- Por que você não faz essas observações em voz alta durante as aulas?”. Ele não esperou a resposta. Creio que já sabia. Eu não falava porque acreditava que ninguém queria ouvir.

               O primeiro atrito entre professor e aluno em minha turma aconteceu logo no comecinho do ano. Um professor de Estudos dos Problemas Brasileiros, uma moral e cívica disfarçada e adaptada para universitários, apresentou umas três aulas seguidas falando sobre drogas. A cada aula ele trazia exemplos de dois tipos de drogas e decorria sobre o assunto. Até que um dia um aluno levantou e perguntou:

               - “Professor, segundo suas aulas devo acreditar que a droga é o verdadeiro problema do Brasil. Basta então acabarmos com este mal para que o país tenha todas as condições sociais e econômicas de um país do primeiro mundo?”

               Pensei que o professor explodiria, ele ficou vermelho e começou a falar tão irritado que eu não conseguia dar uma lógica ao que ele dizia. No final do que deveria ser sua resposta ao aluno ele fechou o livro e deu por encerrada a aula. Antes da próxima aula, na semana seguinte, vimos passar no corredor três soldados do exército com a roupa da tropa de choque, inclusive o escudo. Dirigiram-se até o grêmio, onde por muitas vezes eu ficava jogando totó. Aliás, o que de melhor eu aprendi na faculdade. Saíram de lá sem ninguém, mas o boato que correu é que eles procuravam o aluno que havia “desafiado” o professor de EPB, mestre este que, por coincidência, era coronel do exército.

               Vários professores eram militares, mas este não era motivo de grande preocupação, havia coisa mais importante para lutar, a continuidade do curso era uma delas. Na época o governo militar tentava substituir o curso de história por um de estudos sociais, onde depois de quatro anos sairiam professores aptos a darem aula de história e geografia. Claro que era uma tentativa de esvaziar a qualidade do curso, colocando no tempo destinado a um programa o conteúdo de dois. Houve discussões, manifestações e conseguimos salvar nosso curso, ao contrário de muitas universidades, que viram seus cursos de filosofia, sociologia e ciências sociais serem fechados.

               Esta luta estimulou outras lutas. Muitos alunos passavam mais tempo no grêmio planejando manifestações do que em sala de aula. Nossa faculdade ocupava um dos prédios da Unidade de São Cristóvão do Colégio Pedro II. Quando o governo federal resolveu fechá-la um grupo de  ex-alunos ilustres do CPII assumiu a faculdade. No início as mensalidades eram baratas, mas quando começaram a subir, em uma assembléia confusa os alunos decidiram fazer greve. A primeira greve de alunos no período militar. Mas como era de se esperar, nada adiantou. Decidiu-se então por uma greve de pagamento. Durante todo o ano ficávamos sem pagar as mensalidades, mas bastava chegar às provas finais e ameaçarem nos reprovar por não fazê-las, que corríamos para pagar. Grande greve!

               Claro que tentamos reivindicar mudanças nos quadros de professores. Para o primeiro professor que sofreu nosso “ataque” a justificativa foi que explicava de forma muito confusa. O Bedel disse que ele não seria trocado por ser o professor de maior quantidade de títulos da faculdade. Derrotados, ainda tivemos que ouvir a bronca do Mestre que aos berros dizia que lecionava para universitários, se estávamos confusos é porque não tínhamos base, então que corrêssemos atrás do prejuízo. Ele estava certo. Outras tentativas de trocar professores foram frustradas e os alunos resolveram mudar o foco. Estávamos aprendendo a protestar, então qualquer motivo era válido. Até protestar pela falta de papel higiênico no banheiro, o chamado “movimento das aranhas molhadas”. Quem sofria com nossa ânsia de protesto era o lindo muro no início da rua. Por várias vezes foi pichado com palavras de ordem contra a faculdade ou o governo. O morador o pintava sempre que pichavam, até que desistiu e aproveitando os bons ventos da abertura que começavam a soprar, resolveu o problema pintando no muro uma espécie de margem que poderia servir como moldura para as pichações que não apagaria mais. E assim, enquanto não aprendíamos a lutar pelo nosso país, brigávamos pelo direito de brigar.

               Na segunda metade do curso iniciou-se o processo de abertura política e pudemos perceber que as coisas estavam mudando até mesmo pela movimentação no corpo docente da faculdade. Por ironia do destino uma professora que era filha de militar foi substituída por motivo de doença, por uma professora filha de exilados políticos. De repente de uma “sargentona” (ou melhor, “generalona”) surgiu uma professora liberal até demais, que apresentava todos os estereótipos que os militares condenavam numa mulher moderna e por isto perseguiram tão injustamente a nossa querida Leila Diniz. A nova professora agitou as aulas desde o início. Já no primeiro dia comentou sobre a censura ter liberado a peça Rasga Coração de Vianinha e tornou obrigatório para a aprovação de sua disciplina que assistíssemos a peça. Não esqueço o espanto de um colega:

               -  “Mas é uma peça comunista!”

               Já estávamos acostumados com ele. Tinha medo de tudo.Isto ficou claro quando ele disse para a professora de História da Idade Média que ela queimaria no inferno pelos comentários sobre a Igreja Católica. À professora restou dizer que temia muito o tipo de professor que ele se tornaria.  Agora ele se desesperava com o trabalho imposto pela nova mestra e foi com muita surpresa que o encontrei no teatro. Enquanto a peça não começava, ele se mostrava agitado e olhando para os lados. Quando abriu a cena entraram atores simulando uma manifestação e carregando bandeiras comunistas ele quase surtou. Mesmo sendo enorme ficou pequenininho se encolhendo todo na cadeira. Naquele momento, vendo a reação de meu colega eu fiquei feliz por ter conseguido escapar de ficar como ele.

               Para não dizer que não falei das flores, ou melhor, de política em meu período de faculdade devo confessar que em 1980 eu e meus colegas fomos invadidos por uma linda novidade, o sindicato polonês Solidariedade. Foi uma coisa muito bonita de acompanhar. Ver o povo de um país com um sistema autoritário gritar por mudanças e forçar essas mudanças, foi no mínimo emocionante. Saber que estávamos em situação parecida criou uma ligação muito forte com que acontecia lá. Vestimos literalmente a camisa, pois as camisetas com a palavra solidariedade em polonês eram quase um uniforme. Eu posso dizer que isto ajudou a impulsionar a vida política do Lula, que era comparado a Walesa, o líder do sindicato polonês. Claro que esta comparação era fruto de nossa necessidade de heróis.

               Talvez não tenha aproveitado a faculdade como deveria e poderia enumerar várias causas para isto,  aulas maçantes; o sacrifício para chegar a faculdade numa época em que o transporte público era tão ruim que muitas vezes cheguei na faculdade depois de horas presa em engarrafamentos na Avenida Brasil e só restava voltar pra casa sem ter assistido aula; meu trabalho também mostrou ser uma excelente desculpa para faltar a faculdade, pois preparar minhas aulas era pra mim muito mais interessante.

               Poderia continuar citando várias razões para justificar não ter aproveitado como deveria o período da faculdade, mas a verdade é que ela não me ofereceu tudo que eu esperava e o engraçado é que na época eu ainda me sentia culpada por isto. Culpada por ter sido uma jovem alienada, por não conhecer meu país, por ter ignorado os jovens que morriam por um Brasil diferente. Mas entendo agora que não poderia ser de outra forma. Os jovens que lutaram contra a ditadura chegaram adolescentes ou adultos aos anos 60, eles viveram todo um processo que eu não conheci. Nasci em 60, fiquei presa no limbo, praticamente já encontrei a ditadura montada.  Agora, o que me deixou aliviada foi ouvir Wladimir Palmeira numa palestra dizer que durante sua participação nos movimentos estudantis não tinha noção real do que acontecia e que a sua única preocupação durante a invasão da reitoria da UFRJ era ter certeza que os soldados não iriam passar a mão na bunda de sua namorada, que também participava do movimento. Diante disso, minha catarse foi feita e parei de me culpar por minha alienação compulsória.

               A quem se decepcionou por não ver aqui uma participação ativa de uma militante contra um sistema opressor, devo dizer em minha defesa que estava num momento de construção. Não se pode lutar por algo que você não conhece e eu ainda estava descobrindo o mundo. Neste processo de descoberta, já num período pós faculdade, acompanhei de perto o processo de redemocratização de nosso país, mesmo triste por ser tão lento, pois as mudanças iniciadas ainda durante o período de faculdade praticamente atravessaram duas décadas para se concretizarem: A fala de Geisel prometendo a abertura; A foto do canhoto  Figueiredo assinando o documento de posse acompanhada da manchete debochada “Figueiredo assina com a esquerda”  (acho que era o Pasquim); o processo da anistia com a volta aos poucos dos exilados; a luta frustrada pelas diretas; a eleição de Tancredo já mostrando mudanças no colégio eleitoral e a tristeza de ver um Sarney tomando posse; As primeiras eleições diretas para governador e finalmente a eleição direta para presidente, que depois de tanta espera e tanta falta de prática política, nos conduziram a um Collor. O que posso dizer é que tudo isso começou com uma Dinaiá imatura e quando fecha o ciclo já me sentia pronta para ser realmente uma cidadã.

               Confesso que não fui uma aluna politizada como se espera de alguém de meu curso, mas o que aprendi foi fruto de uma busca pessoal pelo conhecimento, busca essa que se deu verdadeiramente após cursar a faculdade. Embora ela não tenha me dado o conhecimento que eu esperava, me deu um diploma, a certeza de que não queria repetir com meus alunos os erros que cometeram comigo e  também alguns campeonatos de totó.

                                                            Dinaiá Lopes