7 de janeiro de 2015, depois de quase duas semanas deste dia, que ficará para sempre na lista dos absurdos da humanidade, ainda não consigo terminar um texto sobre o assunto. É trágico demais, absurdo demais e infelizmente previsível demais. Achei que com o passar dos dias as ideias se distanciariam da emoção e eu pudesse escrever com mais facilidade, mas chego à conclusão que nunca será fácil.
Ao longo de minha vida consegui em várias situações me colocar da seguinte maneira: eu não concordo, mas compreendo e respeito. Isto serve para assuntos religiosos, políticos, esportivos, ou seja, qualquer coisa que provoque debate e consequentemente possa gerar conflito. Mas essa regra nunca se aplicará a assassinatos, ainda mais em nome da religião. Como alguém pode acreditar que Deus aceita estes atentados como sinal de amor a Ele?
Nós cristãos ultimamente nos vemos na cômoda posição de julgar todos os muçulmanos como se fossem um grupo homogênio, colocando no mesmo pacote radicais obtusos e mulçumanos que professam uma religião que merece ser respeitada de forma digna e fraterna. Não percebemos que os que radicalizam e que se deixam levar pelo ódio nos vencem quando respondemos com o mesmo ódio e irracionalidade deles. Não podemos esquecer que também carregamos nossas culpas. Nós que criamos as cruzadas. Nós que perseguimos e jogamos nas fogueiras da inquisição qualquer um que ousasse ser diferente. Nós, que ainda hoje, vemos instituições religiosas se atacando mutuamente, tentando mostrar o quanto o seu Deus e o seu Jesus é que é o verdadeiro. Lembrei-me de um dia em que estava no ponto de ônibus e duas mulheres que ali se encontravam começaram a conversar e uma convidou a outra para visitar a sua Igreja. A recém-convidada disse de imediato: “ Não posso, meu pastor não deixa. O meu Deus não entra na sua Igreja. “ Eu não pude acreditar no que ouvia e confesso que tive vontade de responder poucas e boas àquela mulher. Contive-me, por mais que não concordasse com aquelas palavras absurdas, reconheci que era direito dela pensar assim. Mas minha alma foi lavada pela lucidez da mulher que fizera o convite e que com toda a calma respondeu: “Não tem problema, me dê o endereço de sua Igreja que eu e meu pastor a visitaremos, pois o meu Deus entra em todos os lugares onde o seu nome é honrado.” Ao ouvir esta resposta tive vontade de abraçar essa mulher de aparência tão simples, mas com tanta sabedoria. Na verdade, nós que ainda não conseguimos aprender a conviver com a diferença em nossa própria cultura, nos achamos aptos a julgar os outros grupos.
Não vejo todos os muçulmanos como seres prontos a nos destruir. Se eu generalizar, estarei me igualando aos radicais. Vejo os muçulmanos como um povo com uma filosofia religiosa até muito parecida com a nossa, afinal, Maomé foi beber na fonte judaico-cristã para elaborar suas leis e escrever o Alcorão. No Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, vemos a presença de Cristo, não como filho de Deus, mas como um de seus profetas.
Veja um trecho de um texto que retirei num site de estudo islâmico:
“Crer em Jesus Cristo e na Virgem Maria (que a paz esteja com eles) é obrigação fundamental de todo o muçulmano. Para ser considerado muçulmano, o indivíduo deve não só acreditar em ambos, mas em todos os Profetas enviados por Deus Altíssimo aos homens antes de Mohammad (A.S.), como Noé, Abraão, Moisés, David e João, entre outros. Todos eles são considerados, pelos muçulmanos, como seres humanos infalíveis e impecáveis, verdadeiros exemplos, escolhidos por Deus Altíssimo para guiar a humanidade e transmitir a Sua palavra.
Jesus Cristo e sua Santa Mãe, a Virgem Maria, têm grande importância para os muçulmanos. Tanto que há uma Surata inteira, intitulada "Mariam" (Maria, em árabe), a de número de 19 do Alcorão, que fala da anunciação, concepção e nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Para os muçulmanos, ele é um Profeta, que disseminou as mensagens da crença em Deus Único e do amor ao próximo. Os muçulmanos crêem que ele subiu ao Céu e que voltará no Dia do Juízo Final para presidir, ao lado do Imam Al-Mahdi, o julgamento de toda a humanidade. Não cremos, contudo, que ele seja filho de Deus.”
Site https://www.ibeipr.com.br/perguntas_ver.php?id_pergunta=20
Diante de pensamentos como este, como acreditar que os muçulmanos estão lutando contra o cristianismo? Eles até respeitam Maria mais do que muitos cristãos que teimam em dizer que ela foi uma mulher comum e alguns chegando ao ponto de dizer que ela era uma prostituta.
Não precisa ser nenhum gênio para perceber que o que leva a esse ódio é a manipulação da religião por homens que querem a todo custo e usando qualquer artimanha, ter poder sobre os outros homens. Que atrás de toda essa história de guerra santa encontramos a vingança de povos por muito tempo explorados e humilhados por nações ocidentais, que tinham em comum o fato de serem cristãs. Basta verificar como o islamismo cresce nos países pobres da África e da Ásia. Regiões que tiveram a possibilidade de se desenvolverem naturalmente sugada pela ganância de multinacionais, apoiadas por governos estrangeiros, que queriam apenas explorar suas riquezas. Agora, que os exploradores se retiraram, foram abandonadas a própria sorte, com lutas internas pelo poder alimentadas por uma manipulação religiosa e por uma insaciável sede de vingança. O grito deles não é morte aos cristãos, ou morte aos infiéis, o grito preso na garganta destes povos é com certeza morte àqueles que nos humilharam, exploraram e nos reduziram ao que somos hoje, mesmo que nem tenham consciência disto.
Maomé criou a religião islâmica para unir um povo que estava fraco porque era dividido. A história continua se repetindo nestes países de islamismo radical. Eles buscam se unir pela religião e estão tão embrutecidos por toda violência que sofreram, que suas mentes deturpadas conseguem transformar uma coisa sagrada e bela em fonte inesgotável de ódio. No meio deste maremoto de conflitos estamos nós, cristãos e muçulmanos comuns, que felizmente tivemos a oportunidade de entender a religião separada da política. Que conseguimos perceber os muitos erros que foram cometidos ao longo de séculos e séculos de manipulação religiosa, por ambos os lados. Mas todo esse entendimento não resolve o problema, pois os radicais continuam alimentando seu ódio, se agarrando a qualquer desculpa como munição para o seu radicalismo.
O 11 de setembro foi o choque maior. Foi a trombeta que tocou em nossos corações para anunciar que algo deveria ser feito. Mas o ódio foi respondido com o ódio e o problema só vem se agravando. O nosso medo faz com que vejamos a religião islâmica como inimiga, quando na verdade são os grupos radicais que a deturpam e manipulam que nos querem ferir.É claro que os culpados deveriam ser punidos, mas ao generalizarmos aumentamos a barreira entre cristãos e os verdadeiros muçulmanos. Infelizmente o 11 de setembro abriu uma justificativa prévia para que todo muçulmano fosse perseguido e visto como terrorista. O ato feito por um grupo radical forneceu a permissão velada para brincadeiras desagradáveis e julgamentos debochados da cultura de um povo que apenas aparenta ser diferente de nós.
Dia 7 de janeiro de 2015, mais um episódio se une a lista de ódios e rancores. O ataque ao jornal francês, mais do que um ato bárbaro, foi um ato doentio. Pessoas que sofreram uma manipulação religiosa, encontraram na religião, motivação para extravasar seu ódio. Deturpam ensinamentos sagrados, palavras de amor escritas para engrandecer a Deus, transformam-se em munição para a destruição de outro ser humano.
Ao contrário da frase que virou moda, eu não sou Charlie. Não concordo com sua linha editorial, não acho correto brincar com a crença pessoal, que é sagrada para todo indivíduo. O fato deles também debocharem das Igrejas cristãs, não justifica a falta de respeito com que trata esses assuntos. Eles deveriam ser inteligentes o bastante para satirizarem a política e o radicalismo, sem atacar diretamente os ritos e dogmas religiosos. Mas mesmo não concordando de como as coisas eram ditas no jornal, nunca, em tempo algum, conseguiria encontrar nesta discordância uma justificativa para o que aconteceu. Eles tinham direito de se expressar e cabia a cada um de nós comprar ou não o jornal e quem sabe um dia a evolução humana caminharia para tornar superado este tipo de “humor”.
Mas vivemos num mundo doente e entender a noção básica de liberdade de expressão é difícil. Ainda mais para quem não tem liberdade para pensar por si só. Colocam para alguém sofrido e revoltado que Deus quer que ele mate os infiéis, que assim ele terá o paraíso com mil virgens, ou seja, é dado a ele, uma pessoa totalmente comum e alimentada por séculos de ódio, a oportunidade de ser herói e ter na outra vida tudo que ele não teve nesta. No final das contas o que vejo nessas regiões cercadas de miséria e revolta, são pessoas que se dividem entre grupos de loucos oportunistas e os que temem estes loucos e por isto se calam e aceitam o que é determinado.Enquanto isto ocorrer, enquanto este ódio ainda for alimentado, sofreremos com notícias como estas.
De tudo que aconteceu no dia 7 de janeiro , pra mim, a imagem mais forte e que ficará gravada em minha mente, é o momento em que o jovem terrorista volta para executar o policial que estava caído e ferido. O ato de covardia já seria o suficiente para marcar esta imagem, mas saber que aquele policial também era muçulmano, faz o ato ganhar uma ironia que parece ser de origem divina. Ficou claro de que atingimos um ponto em que o ódio cega de tal forma, que não distinguimos quem é irmão ou inimigo.
Gostaria de terminar o texto com palavras otimistas, mas acompanhando as diversas reportagens sobre o radicalismos islâmicos nos países de extrema pobreza, até posso entender como eles chegaram a este ponto em que se confunde religião com barbárie, mas não consigo pensar numa maneira pacífica para acabar com isto. Pelo jeito, a nós: cristãos, muçulmanos, judeus, hindus, budistas... que conseguimos ter a verdadeira visão de que Deus é amor e que nada justifica o ódio, cabe apenas rezar e propagar ao próximo, mais próximo, que só pelo amor construiremos uma humanidade igualitária e solidária.
Dinaiá Lopes
