
Para inglês ver.
A expressão “para inglês ver” já é antiga. Num Rio de Janeiro com ruas apertadas, sujas e fedorentas, ela era usada para explicar obras que foram feitas com o objetivo de limpar e embelezar o Rio. Obras que, embora sacrificassem a população, só eram feitas no espaço delimitado como caminho obrigatório para as autoridades estrangeiras que visitavam o país. Como naquela época a grande potência econômica e nossos maiores credores eram os ingleses, logo os moradores da cidade perceberam que o embelezamento não era para a povo e sim para esconder dos olhos dos visitantes a miséria do país. Foi então utilizada a expressão “pra inglês ver” (que já existia) para explicar o objetivo da obra.
Escrevo sobre isto porque esta expressão vem logo à minha mente quando o assunto é UPP. Não é coincidência que, justamente quando se aproxima dois grandes eventos que atrairão muitos visitantes e seus dólares, finalmente as autoridades estejam prontas a levar “cidadania” para um grupo de pessoas cuja marginalização social sempre foi jogada para debaixo do tapete. Estamos assistindo a versão contemporânea do “pra inglês ver”. Desta vez, mais do que o enorme volume de obras pela cidade, buscando deixar os lugares obrigatórios para os visitantes, ainda mais bonitos, vemos o governo tentando mudar a imagem violenta do Rio com a tão badalada UPP.
Algumas pessoas defenderam as obras do então prefeito Pereira Passos, dizendo na época que pelo menos levou modernidade a cidade. Hoje vemos as pessoas divididas entre aquelas que percebem as reais intenções e fica com muitas reservas, e as que querem acreditar que, pelo menos, algo está sendo feito e que, pelo menos, estão melhorando a situação. Parece que nosso problema é o pelo menos, acredito que nosso destino é nos contentarmos com o menos.
A ideia apresentada inicialmente parecia boa, ocupar as comunidades para que a população tenha acesso aos serviços básicos que eram controlados pelos traficantes. As reportagens encomendadas pelo serviço de relações públicas do governo apresentavam pessoas felizes com a ocupação. A primeira UPP no morro da Providência mostrava coerência: começar com as comunidades mais calmas faria com que pudessem aprender com os erros, sem grandes riscos. Mas veio a invasão no Complexo do Alemão e vi que o objetivo era realmente ir empurrando o problema para longe da cidade. A imagem dos bandidos fugindo, os helicópteros filmando e nada mais sendo feito, virou pra mim o símbolo desta operação. Fiquei imaginando que faltou a imagem do prefeito e do governador em um dos helicópteros dando adeusinho para os bandidos.
No dia da invasão do Alemão me lembrei de uma casa muito velha que visitei durante uma de minhas férias e que havia muitas baratas. Quando íamos ao banheiro, acendíamos a luz e jogávamos algo dentro do banheiro e esperávamos que as baratas corressem para depois entrar. Não é diferente essas ocupações: eles avisam que invadirão, esperam os bandidos saírem, levando a maior parte das armas e drogas e depois invadem com muita pompa e toda mídia acompanhando.
Hoje a televisão mostra a ocupação do Complexo da Maré. Novamente uma invasão anunciada, bandidos com tempo de saírem e levarem suas drogas e armas e novamente imagens de apreensão de pequenas quantidades de drogas e poucas armas. Isto apresentado como um troféu a ser exposto. Mas a pergunta que sempre fica é: pra onde foram os bandidos?
Numa época de muita sujeira no bairro onde ficava uma das escolas que eu trabalhava, conversei com os alunos sobre a importância de cada um manter a sua calçada limpa, mas sempre enfatizei que não era jogando o lixo na calçada do vizinho que conseguiríamos um bairro limpo. Até que me provem o contrário, (por favor, me provem que estou errada) o que vejo é o governo empurrar os bandidos de uma favela para a outra, até tirá-los da cidade e pousar em fotos com slogans de uma cidade pacificada. Mas será que o título de pacificação está sendo bem empregue? O famoso Duque de Caxias era chamado de “o pacificador” porque terminava com as revoltas, levando paz ao local. Porém ele conseguia isto com extrema violência e muitas mortes. Aprendi a ter medo deste termo sendo empregue pelo governo. Principalmente nesta fase do processo, em que estão ficando poucas as opções para os traficantes se deslocarem.
Hoje vejo duas situações que podem fazer tudo sair do controle: primeira situação a violência que está acontecendo em comunidades ocupadas pelas UPPs e que embora tentem minimizar, o grande número de policiais militares mortos nestes primeiros meses do ano, já deixa claro que o problema é grave; e a segunda situação é a “sujeira” varrida das comunidades ocupadas do Rio e que estão caindo aqui na baixada. E para quem ousa dizer que não há relação nenhuma, basta ver os índices de violência do local antes e depois das UPPs do Rio. Como moradora de São João de Meriti, posso dizer com toda certeza que há mudanças gritantes, que começa pelo número enorme de moradores de rua, coisa que não tínhamos, e passa pelos índices de violência da cidade, que chegaram em alguns casos a ter um aumento de mais de 400% no último ano. Índices que de tão alarmantes já foram abordados em reportagens de vários jornais, inclusive globais.
Ouço agora um oficial da polícia dizer que a ocupação foi um sucesso, que em apenas 15 minutos eles ocuparam, sem dar um tiro (em quem se os bandidos já fugiram?). Vejo imagens na televisão de crianças passeando nos cavalos da polícia. O repórter anuncia que garis já estão entrando no complexo para iniciar a limpeza. Mas fico pensando em como ficará a situação agora de minha cidade com mais essa ocupação no Rio. Como acreditar que não há motivos para me preocupar, como diz o governador, se os índices de violência quadriplicam. Se numa cidade, que não vai ter jogos da copa, com mais de 500 mil habitantes, há apenas 250 policiais militares lotados no 21º batalhão, incluindo os de atividade burocráticas e os que estão de licença. (número citado em reportagem no início do mês).
Não nego que algo está sendo feito. Questiono que o objetivo final seja apenas limpar a cidade para os eventos e por está razão, as ações são mais de propaganda do que de realmente efeitos sociais, que o diga a já mencionada violência crescente nas áreas já ocupadas. Mais do que aplausos eufóricos das primeiras UPPs, é momento de muita observação, reflexão e cobrança.
Não sou entendida no assunto de violência, muito menos de tática policial e militar, mas acredito que enquanto deixarem o traficante sair da comunidade com a invasão anunciada estarão apenas transferindo o problema para outra comunidade. Lembrei-me de uma expressão: “não há meia gravidez”. Não há meia ação, ou prende-se o traficante ou então pare de brincar com eles de ficarem trocando de lugar.
Eu sei que a situação é delicada, que o estrago seria terrível se chegassem atirando nos bandidos e acertando os moradores, mas já que a polícia faz tanta propaganda de seu serviço de informações, acredito que eles poderiam ao menos acompanhar a saída destes bandidos da comunidade e nesta fase de mudanças deles cercá-los e capturá-los. No episódio do Complexo do Alemão, por que eles não aproveitaram para cercá-los e prendê-los ao invés de filmarem? Eles já estavam fora da comunidade, não havia nenhum risco aos moradores.
Como eu disse antes, não entendo de táticas militares e policiais, mas podemos perceber quando a ação é real ou para inglês ver.
Dinaiá Lopes
30/03/14